A contradição humana

Obra construída sobre a observação profundamente irónica, mesmo sarcástica, de traços do nosso banal quotidiano, "A contradição humana" aponta com propriedade algumas das contradições da vida comum, adotando um ponto de vista aparentemente inocente. Daquele tipo de inocência que é capaz de gritar que o rei vai nu.

O título parece estar construído sobre a evocação de uma frase feita, ou lugar-comum, disponível na memória literária de leitores adultos e/ou surgindo por paronímia: "a condição humana", o título de uma obra de referência, largamente reconhecida, no âmbito da filosofia. O reconhecimento da intertextualidade entre ambos é operativo na extração de um implícito segundo o qual a contradição poderá ser traço fundamental da condição humana.

De facto, são apontados, com aparente assombro ou incompreensão, treze contradições identificáveis na vida ou em pessoas próximas do narrador: o efeito de inversão operado pelo espelho do seu quarto (que troca a esquerda com a direita, mas não o lado de cima com o de baixo), a tia que gosta de pássaros mas os prende em gaiolas, o vizinho pianista que fica feliz ao tocar músicas tristes, a vizinha rezingona que, por mais que abuse no açúcar do café, nunca deixa de ser uma pessoa amarga, o administrador do prédio que olha cuidadosamente para ambos os lados ao atravessar a rua, mas não olha para o lado quando aparece um pobre, etc. Estas contradições resultam de uma observação apurada e incisiva da realidade, mas são apresentadas como resultantes de uma visão infantil, nova, inocente e honestamente intrigada, ainda não familiarizada com determinados factos e, portanto, ainda sensível a eles. Surgem ao narrador, que assume o seu texto em primeira pessoa, como se se tratasse de descobertas que o crescimento proporciona, sem maldade, sem intenções ocultadas, e fixadas na escrita de uma espécie de diário íntimo. Para algumas, são apresentadas explicações ingénuas.

A presença da tia que canta ao narrador para o adormecer (mas que, afinal, provoca o efeito contrário) ou do pai, que lhe fornece algumas explicações, vem confirmar que o narrador é uma criança e, assim, enquadrar e justificar a visão infantil que este adota. Alguns recursos linguísticos orientam-se no mesmo sentido, como a descrição dos dedos de um pianista, "mais compridos do que aulas de matemática", evocando um quadro conceptual típico da infância e adolescência e explorando o lugar-comum associado ao enfado motivado pelas ditas. Porém, o discurso, integrando algumas construções e alguns termos pouco comuns, não oculta o facto de este ser igualmente o olhar de um adulto questionador, que mantém o prazer de se maravilhar com a realidade e de brincar com as palavras. A obra é, então, marcada por heterogeneidade no pólo da criação, revelando o processo de faz-de-conta que a escrita envolve.

A inocência mostrada é reforçada por aspetos gráficos peculiares: as palavras e frases, todas manuscritas, apresentam segmentos em letra cursiva e em letra "de imprensa", com maiúsculas e minúsculas, a vermelho, a preto e a branco, de tamanho irregular e, por vezes, alinhamento defeituoso; alguns desses segmentos mostram acrescentamentos posteriores a uma escrita inicial; há comentários entre parêntesis e palavras envoltas em grafismos diversos, tudo contribuindo para a aproximação desta obra de um diário pessoal, o que constitui outro indício de um quadro conceptual típico da infância e adolescência. As ilustrações que acompanham cada uma das contradições apresentam traços de ingenuidade e exageros e exploram sentidos diversos das palavras - como o desenho de uma pena de pássaro junto do comentário "é uma pena", que remata a página em que o narrador se espanta com o estranho amor às aves manifestado por quem tem pássaros presos em gaiolas.

Há que assinalar, por outro lado, que esta obra apresenta traços de polidestinação: apesar de parecer ser destinada a leitores infantis, transporta uma mensagem que pode ser recebida com vantagem por leitores adultos. E a aparência de sincera estupefação infantil não deixa de constituir, em particular para o leitor adulto, uma crítica mordaz aos nossos vícios diários. Neste caso, as personagens, que no nível de leitura "infantil" corresponderiam a seres da esfera restrita da vida de uma criança, são entendidas como tipificadas, oferecendo as suas roupagens a cada indivíduo das sociedades atuais, o que inclui o próprio leitor. A obra representa, assim, com humor, um desafio para que os indivíduos tomem consciência das contradições das suas atitudes, dos seus gestos e da relação social que estabelecem com os seus semelhantes (e não tão semelhantes). Apresentando esse desafio à autocrítica, oferece um contributo para a consciência ecológica dos cidadãos, não só pelo questionamento da sua relação com o meio natural, mas também - e sobretudo - da sua relação com o meio social, condição fundamental para a sua condição humana.

Ramos, R. 2011

Publicado em

Malasartes [Cadernos de Literatura para a Infância e Juventude]

nos 21-22, dezembro de 2011, p. 101-102 (ISSN 0874-7296)

Atualizado em 17 MARÇO 2022
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