As duas estradas

As duas estradas, obra vencedora na categoria de novas publicações do "2nd CJ Picture Book Festival 2009" (Coreia do Sul), organiza-se sobre um cruzamento de duas narrativas verbais e icónicas, que relatam duas viagens parcialmente simultâneas, realizadas entre duas localidades, Lisboa e Alcobia do Tejo, em dois carros diferentes, por dois grupos de pessoas da mesma família. Os subtítulos esclarecem a especificidade de cada um dos trajetos, «N126 vs A1» (Estrada Nacional nº 126 versus Autoestrada n.º 1) e «A1 vs N126», deixando implícitas as diferenças entre ambos, em termos de espaços percorridos, de duração das viagens, de estados de espírito, entre outras.

Verdadeiro exemplo do 2 em 1, este livro põe à prova diferentes capacidades dos leitores, exigindo atenção na destrinça das duas narrativas (verbais e visuais) e, simultaneamente, na descoberta das relações, apenas sugeridas, existentes entre elas. As duas narrativas distintas, assinaladas por duas capas diferentes, estão organizadas de forma a que o livro possa ser lido nos dois sentidos.

No percurso feito pela autoestrada, a narrativa desenvolve-se tendo por base um frame da viagem focalizada no seu fim, no instrumento (veículo), no seu desempenho e naquilo que lhe está diretamente associado. O reportório interpretativo identificado inclui termos que se centram sobre o veículo e a estrada e exclui o espaço físico em que as personagens se movem para lá dos limites do caminho. Neste frame, é saliente a valorização da velocidade, facto que é compatível com a focalização no objetivo último e não com o percurso em si, desvalorizado ao ponto de se tornar indistinto.

Assinale-se que este percurso é feito tendo como condutor um homem, o pai da família, e que são desta forma ativadas as expectativas e lugares-comuns associadas à figura masculina: a velocidade, a linearidade de pensamento, a valorização do que é direto, eficaz, funcional, télico.

Focalizando o resultado da viagem e não o seu desenvolvimento, a narrativa oculta a dimensão ecológica ou contextual do processo desenvolvido, não promovendo uma consciência da sua integração num plano mais vasto de interação do indivíduo com o meio ambiente. Este é configurado somente como o espaço indiferenciado onde os indivíduos se movem. No quando da Educação Ambiental, esta é a mais elementar conceção de meio ambiente e a que a manifesta menor grau de desenvolvimento de ecoliteracia.

Por seu lado, a narrativa que constrói a viagem pela estrada nacional distingue-se pela valorização da viagem como experiência multifacetada, configurando-a como fruição do espaço e do tempo. Neste caso, o espaço exterior revela-se aos viajantes e apresenta-se como fonte de fruição, com a nomeação de múltiplas entidades. Além disso, a viagem prolonga-se no tempo, com múltiplas paragens. Assim, espaço e tempo tornam operativos pela sua referenciação, sendo materializados em atividades e permitindo ao leitor a apreensão da sua existência - o que permite inscrever cada ato do indivíduo num complexo de coisas e de estados de coisas, de redes de interações.

A relação com outros indivíduos presentes no espaço / tempo da viagem é igualmente considerada. Esta é uma dimensão essencial da caraterização do indivíduo enquanto ser social.

Finalmente, importa notar que este percurso é feito tendo como condutor uma mulher, a mãe da família, por oposição ao condutor masculino da versão concorrente. São, desta forma, ativadas as expectativas e lugares-comuns associadas à figura feminina, caraterizando-se esta viagem sob a sua condução como indireta, lenta, periférica, recreacional e epicurista.

Assim, a narrativa focaliza a viagem enquanto processo e não exclusivamente o seu resultado final, evidenciando a sua dimensão ecológica ou contextual e, portanto, favorecendo a consciência da sua integração num plano mais vasto de interação do indivíduo com o meio ambiente. Neste caso, o meio ambiente não é somente o espaço indiferenciado onde os indivíduos se movem, numa visão limitada, elementar e profundamente antropocêntrica, mas surge alguma noção de interação e de interdependência: começa a ser configurado um frame onde o homem ocupa o lugar de mais um elemento de um sistema complexo. Ou seja: esta narrativa, por oposição à primeira, é mais promotora da ecoliteracia e, portanto, da sustentabilidade da vida.

Ramos, R. & Ramos, A. M., 2010

Atualizado em 17 MARÇO 2022
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