O dia em que a mata ardeu
Esta obra assume claramente a defesa do ambiente,
ficcionando um problema referencial bem presente no imaginário dos
leitores potenciais: os fogos florestais. Para além das linhas de
desenvolvimento da narrativa, alguns documentos de entidades e seus
dirigentes (Direção-Geral dos Recursos Naturais, Autoridade Nacional
de Proteção Civil, Corpo Nacional de Escutas) testemunham o
enquadramento e os objetivos adotados pela edição, inscrevendo-a
numa ação de ecoliteracia e luta contra este problema concreto.
A voz narrativa, em primeira pessoa, descreve com algum pormenor uma mata a que chama sua, para logo se corrigir, lembrando(-se) que há realidades intangíveis que não pertencem a indivíduo algum: "a frescura da brisa, o cheirinho da caruma dos pinheiros, o canto das aves ou o desenho das pedras". Esta recusa da ideia de propriedade dos elementos naturais incorpora várias teorias e formas de relacionamento com a natureza, especialmente aquelas que são de teor mais marcadamente espiritual. Ainda assim, o meio natural é aqui configurado como espaço de fruição do ser humano, sem real interação entre um e outro e sem perceção das respetivas interdependências, num nível relativamente superficial de consciência ecológica.
Os processos de referenciação e a caraterização das realidades configuradas (as diversas espécies de árvores e as caraterísticas dos seus troncos e folhas; as flores e os arbustos, com os seus traços particulares; as variadas aves, os insetos e os mamíferos, com as suas marcas diferenciadoras) tornam estas entidades e seus estados presentes no mundo simbólico dos leitores e conferem-lhes existência relevante no mundo daqueles.
Num registo fortemente maniqueísta, o narrador conta como uns pássaros Bisnaus "deixaram atear um grande fogo" na mata. Estas personagens são caraterizadas de forma humorística e extremamente disfórica, incorporando um largo conjunto de defeitos e vícios. Alguns desses vícios replicam práticas dos homens em relação ao meio natural: entram "com o carro pela mata dentro", comem desmesuradamente, espalham lixo, fumam. E é de um descuido com um cigarro que surge um fogo florestal, pondo em risco os animais e destruindo as plantas. Chegados os bombeiros, o fogo foi apagado, a mata foi limpa e, "quando chegou a Primavera seguinte, as árvores voltaram a dar folhas".
Infelizmente, neste aspeto, a coerência da narrativa é posta em causa, na medida em que apresenta uma solução mágica para o problema, branqueando a responsabilidade permanente e os efeitos ao longo do tempo de um incêndio destruidor da floresta. Aparentemente, a busca do típico final feliz faz esquecer que, frequentemente, o reequilíbrio dos habitats não é tão imediato quanto a narrativa sugere ou que é mesmo impossível de atingir por períodos que ultrapassam o tempo de vida de cada pessoa.
As ilustrações, com recurso ao recorte e à colagem de diferentes elementos, exploram o jogo com as texturas e as cores conotadas com a natureza, aproximando-se do universo narrativo recriado. Recuperam, ainda, elementos naturais específicos, permitindo o reconhecimento de espécies vegetais e animais, sem, no entanto, se aproximarem da ilustração científica. Observe-se, igualmente, o jogo de perspetivas e de focalizações, permitindo a recriação de diferentes habitats e de seres de diferentes dimensões, evocando a diversidade da Natureza, assim como os diferentes estádios e transformações por que passa ao longo da narrativa.
Ramos, R. & Ramos, A. M., 2010