Um oceano de histórias

Um oceano de histórias é o título do segundo livro de uma trilogia (ver A minha terra e Montanhas de verde na Serra de Sintra) com textos de João Paulo Cotrim e ilustrações de Alain Corbel) que recorta para o universo ficcional os espaços naturais da área metropolitana de Lisboa. As obras da trilogia enquadram narrativas ficcionais no espaço referencial em torno da capital portuguesa, tendo esta escolhido especificamente o espaço de confluência entre mar e terra. Todas apresentam uma apreciável dimensão estética, tanto ao nível verbal como ao nível visual, assumindo igualmente uma dimensão didática explícita. Aliás, um indício dessa intencionalidade pedagógica reside no facto de os três livros terem sido objeto de revisão científica por especialistas em ciências naturais e de se caraterizarem, do ponto de vista tipológico, por um modelo de organização híbrido, entre o narrativo e o de divulgação científica.

Os autores tiram partido da dimensão atlântica e marítima da área metropolitana de Lisboa para criar um álbum onde se cruzam realidade e ficção, História e mito, tendo por pano de fundo o Parque Natural Sintra / Cascais. A Natureza, na sua variedade, diversidade, riqueza e beleza, é o cenário ideal para as novas aventuras de Ana e para as extraordinárias descobertas que esta menina curiosa faz ao longo da costa, na companhia do Mar. Uma vez transformado em personagem, o mar, simultaneamente contador de histórias e guia, leva a heroína a descobrir as especificidade da paisagem costeira, chamando a atenção para pormenores da geografia da região, do relevo, da geologia local, da biologia marítima e dos ecossistemas marinhos, da flora, sem esquecer a sua História e as suas estórias.

Do ponto de vista do conteúdo, a obra adquire uma dimensão didática, explicitando conceitos e explicando fenómenos, como a época glaciar e o degelo, a erosão das arribas e das falésias, o movimento das dunas e das areias, as quatro tipologias das areias entre o mar e as dunas fixas, incluindo a identificação das espécies que nelas habitam.

Ao nível da ilustração, destaque-se a exploração dos diferentes planos de cada imagem, permitindo uma leitura demorada das páginas. Valorizando o olhar da protagonista, a representação dos espaços e dos seus habitantes é muitas vezes realizada a partir do seu ponto de vista, o que resulta no claro alargamento dos horizontes. Além disso, a ilustração reforça a personificação do mar, colaborando com o texto, ao mesmo tempo que propõe, seguindo a mesma linha fantástica, a interação da protagonista com o espaço natural e os seus habitantes, representando-a, por exemplo, no dorso de aves ou a voar nos céus.

A obra apresenta um reportório interpretativo que atualiza o frame da descoberta, ganhando particular relevo um conjunto de lexemas evocativos do sentido da visão: a protagonista , a natureza dá-se a ver, a paisagem revela-se. Os verbos de perceção visual são frequentes, mas outros sentidos são envolvidos, sugerindo a multiplicidade de formas de apreensão do mundo. Identificam-se várias sinestesias, sugerindo a apreensão do mundo de modo holístico, ou ecológico.

Uma outra dimensão relevante desta obra verifica-se na insistente representação, ao nível da construção sintático-semântica, dos elementos naturais como agentes das ações e dos estados representados pelos verbos. Esta configuração dos elementos naturais como ativos permite que o discurso explicite a agência e a responsabilidade efetiva dos fenómenos, favorecendo a visão ecológica, de causa-efeito, dando a ver alguns dos processos naturais e promovendo a ecoliteracia.

Finalmente, destaque-se o papel complementar das ilustrações de Alain Corbel, onde desaguam, com expressividade, uma tendência realista e figurativa que permite a identificação dos lugares visitados, assim como das várias espécies e elementos naturais que os caraterizam, com outra mais conceptual e assumidamente mais lúdica e mais pessoal, capaz de brincar com as cores, as formas e os volumes e de redimensionar o texto, dialogando de forma cúmplice com ele.

Ramos, R. & Ramos, A. M., 2010

Atualizado em 17 MARÇO 2022
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