O guarda-rios

Inserido na coleção "Pintar o verde com letras", O Guarda-Rios constitui um dos mais originais livros aí agrupados pela opção por um texto mínimo, quase lírico, que recria, sob a forma de uma singular narrativa mítica, a génese da vinha. Implicitamente associado ao universo - geográfico, natural, cultural - do Douro vinhateiro, o texto, cedendo a primazia da página às imagens de Cristina Valadas, com as quais dialoga, estabelece uma espécie de linhagem nobre para o vinho, apresentando-o como o resultado da fusão de elementos naturais como a terra (as encostas), o fogo (o sol), a água (o rio) e o homem. A paisagem natural e as suas múltiplas condicionantes, algumas aparentemente adversas, sofrem uma evolução que permite a obtenção de um produto único, o mesmo que leva o guarda-rios a pensar "ser guarda-vinhas" e, para isso, "treinava chilreios de vindimar".

Do texto sobressai, para além da brevidade e da opção por uma estruturação que lembra o verso, a valorização da dimensão cromática, em estreita articulação com as ilustrações que dão conta da variação que carateriza a natureza e a paisagem. As cores e o seu impacto refletem os vários intervenientes no processo, mas também ajudam a perceber a sugestão da sua fusão na vinha e no vinho. Personificados ou, pelo menos, animados de vontades e sentimentos, sol, terra e água surgem como fonte de vida da vinha: "gotas que não eram de água, nem de fogo. / Gotas ou lágrimas de chuva, que secavam, multicolores, ao sol. / Lágrimas de um verde verdejante que vinha das ervas, / De um azul azulejante que vinha do céu, / De um vermelho vermelhante que vinha do sol." De alguma forma, o resultado (a vinha) surge de modo inesperado, fortuita mas naturalmente, do namoro prolongado entre terra e sol, entre chuva que se evapora por ação do fogo, e fogo que se apaga por ação da chuva, numa interação de naturais interferências mútuas, enquanto "o Arco-íris retocava tudo de novo", o que constitui uma velada evocação quase religiosa de uma aliança entre o inferior e o superior, entre o material e o transcendente.

As ilustrações de Cristina Valadas exploram, sobretudo, o jogo cromático que carateriza o texto, brincando igualmente com as formas e com a composição da página dupla. A partir de formas simples, mais ou menos reconhecíveis, com a da vinha, a criadora vai procedendo a alterações de cor, recriando as variações na paisagem que acompanham a passagem do tempo e o desenrolar da ação.

Não constituindo uma narrativa de explícita promoção da ecoliteracia, esta obra necessitará, provavelmente, da intervenção atenta de um mediador para que as suas dimensões pedagógicas, ao nível da literacia ecológica, possam ser salientadas. Encerra, ainda assim, virtualidades interessantes neste campo, possibilitando a reflexão acerca da interação entre os elementos com vista ao resultado final, assim como acerca do papel do tempo nesse processo.

Ramos, A. M. & Ramos, R., 2011 

Atualizado em 17 MARÇO 2022
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