O mar

Luísa Ducla Soares é uma das mais conhecidas escritoras portuguesas de literatura para a infância. Com uma vasta obra publicada (chegou recentemente ao centésimo volume) iniciada nos anos 70, esta autora distingue-se pela forma original como revisita e recria os mais diversos temas, alguns particularmente relevantes em termos de pertinência e actualidade. Neste sentido, na sua obra, é possível encontrar textos sobre a guerra, sobre o conhecimento científico e a sua constante evolução, sobre a diversidade cultural e a promoção da interculturalidade, sobre a defesa do ambiente e a promoção do desenvolvimento sustentável, entre muitos outros.

Particularmente atenta à realidade que a cerca, a autora submete-a a um processo de revisitação literária que visa questionar os leitores, incentivando-os à reflexão e à acção.

No caso do volume O Mar, um álbum poético que conta com expressivas ilustrações de Pedro Sousa Pereira, a autora apresenta, num único poema, uma visão dual do universo marítimo, ora destacando aquilo que é valorizado pelo olhar humano ou que lhe confere um papel ecológico importante, como a beleza, a riqueza ou a diversidade que lhe são atribuídas / reconhecidas, ora, por outro lado, sublinhando um outro lado daquele elemento natural, o disfórico, que resulta da acção destrutiva do Homem.

O sujeito poético parece distanciar-se do objecto descrito, aparentando uma posição de imparcialidade e de neutralidade, limitando-se à sua descrição, sem apelar, de forma explícita, a qualquer tipo de ação ou conclusão. De estrutura aberta, o texto descreve duas faces de uma mesma realidade («Este é o mar», lê-se no penúltimo verso, taxativo e definitivo), parecendo deixar ao leitor a opção por uma delas. Contudo, o poema encerra com uma estrutura interrogativa que configura um apelo implícito ao leitor: «Quem é que entende a canção das ondas?». O desafio é posto ao leitor, a cada leitor, à sua responsabilidade individual como cidadão do mundo.

Numa leitura mais detalhada, é possível ver como, na parte positiva, o mar é o habitat, pleno de biodiversidade, de várias espécies, como os peixes, os golfinhos e as baleias. É, ainda, local de eleição das crianças (que nele nadam) e canal de comunicação para os seres humanos («os barcos viajam»). Associado à ação (veja-se a enumeração dos verbos «viajam», «moram», «saltam», «lançam repuxos», «nadam»), este elemento líquido é marcado por uma perfeição que não reside na estagnação, mas num dinamismo comparável ao do próprio ciclo da vida, uma espécie de interação ou de simbiose entre todos os seus habitantes "internos" e "externos". Os jardins de coral ajudam a construir uma imagem de perfeição edénica sublinhada pelas ilustrações de Pedro Sousa Pereira.

Na segunda metade do poema, contudo, a imagem do mar é radicalmente diferente, construída com recurso a uma seleção vocabular claramente disfórica. Vejam-se as estruturas «se esgota em esgoto» e «se lixa em lixo», apontando para a ação de destruição do mar, por exaurimento, em resultado da poluição, onde o jogo sonoro sublinha a negatividade. A enumeração, desta vez, já não é de formas verbais, mas de estruturas nominais que reforçam a materialidade e a efetividade dos vários atentados de que o universo marítimo é alvo: «marés negras», «redes de arrasto», «rastos de sangue», «cemitérios nucleares», «muitos azares». Aponta, sem hesitações, para ideias de exploração desenfreada, destruição massiva e esgotamento de recursos. Ainda que não identifique o seu agente, o sujeito poético só enumera ações humanas. Neste momento da publicação, as ilustrações glosam o mote da destruição, perdendo as cores, o brilho e a vida da primeira parte. A responsabilidade da ação humana nesse processo também está implícita nas imagens, onde surgem casas, fábricas e redes de esgotos, e barcos poluidores.

A ilustração final, possivelmente a mais criativa de todo o livro, é a que acompanha o verso «Quem é que entende a canção das ondas?». Aqui, o ilustrador constrói uma imagem simbólica do elemento marinho, conotando-o não só com a biologia, incluindo espécies naturais (animais e vegetais), mas também propondo a sua reinterpretação metafórica, aludindo à sua importância histórica (evocada pela figura de um navegador), literária (sugerida pela sereia), mítica (lembrada por Neptuno) e científica (activada por um megulhador). Fonte de vida e lugar de mistérios insondáveis, o mar parece não conseguir comunicar com o Homem de forma a ser entendido na sua multiplicidade de formas e recursos. Enquanto a canção das ondas não for entendida, o mar não será valorizado e protegido como necessita.

As duas faces, aqui claramente expostas, tanto do ponto de vista do texto como das imagens que o acompanham e amplificam, parecem colocar o leitor perante uma opção e, sobretudo, uma reflexão.

Ramos, A. M. & Ramos, R., 2010 

Atualizado em 17 MARÇO 2022
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