Estranhões & bizarrocos

O universo animal, ainda que alvo de uma pessoal recriação - dir-se-ia quase poetização - é um dos elos coesivos desta coletânea de contos, alguns dos quais apresentam virtualidades de promoção da literacia ecológica a sublinhar.

Em «O caçador de borboletas» são tematizados os conceitos de liberdade e de equilíbrio ambiental. A personagem principal, um menino, sofre um curioso processo de transformação, passando de caçador a presa, uma vez seduzido por uma borboleta singular. É ela que, através das histórias que lhe conta, o ensina a valorizar as coisas que não se podem ter ou aprisionar, ensinando-lhe o prazer da contemplação das belezas naturais e das experiências sensoriais, assim como o encaminha para a construção de uma forma de pensamento menos centrado em si mesmo.

A relação amorosa, mas, desta vez, completa e absoluta, também serve de topos ao conto «O pai que se tornou mãe». O leitor é confrontado com um casal apaixonado de cavalos-marinhos que descobre, através dos filhos, uma forma de prolongar o seu amor depois da morte de um deles e da inevitável separação. Apoiando-se num facto científico - os cavalos-marinhos macho transportam, efetivamente, as crias no ventre - o narrador constrói uma simbólica história de amor capaz de inspirar os leitores a olharem de uma outra forma as relações afetivas e familiares. Os textos de José Eduardo Agualusa, fortemente poéticos, quase líricos, sublimam, desta forma, comportamentos, emoções e afetos e desafiam o leitor a repensar os seus quadros mentais de distribuição dos papéis dos seres no mundo.

É também o que acontece em «O peixinho que descobriu o mar». Cristóbal, um peixinho confinado ao espaço limitado do seu aquário, contra aquilo que é a sua natureza, sonha descobrir o que existe para além das paredes de vidro que o cercam. Este desejo de liberdade e, sobretudo, de conhecer o Mar, conduzem-no a arriscar a própria vida, saltando do aquário. Surpreendida com a coragem do pequeno peixe, Verónica, a gata da casa, pede ajuda a Nicolau, o velho albatroz, de modo a conseguir realizar o sonho de Cristóbal. A narrativa encerra com um final feliz para o peixinho e permite perceber como a sua ousadia e coragem foram suficientemente fortes para mudar os hábitos de dois animais que, em vez de "predadores", são aqui apresentados como adjuvantes.

Nos contos de Agualusa, a fuga à normalidade, aos raciocínios estereotipados e, sobretudo, às convenções/limitações físicas da espécie a que pertencem é um elemento caraterístico dos seus heróis, num apelo claro à individualidade e à originalidade da conduta humana. Em comum, estes contos têm a individualização das personagens, todas batizadas com nome próprio, algumas com conotações intertextuais e simbólicas, e a positividade das ações que realizam, funcionando como exemplo para a espécie humana. O questionamento sobre o papel de cada ser no imenso ecossistema terrestre encerra o potencial de promove a consciência da complexidade dos sistemas de vida e o seu equilíbrio dinâmico.

As ilustrações de Henrique Cayatte, que lhe valeram o Prémio Nacional de Ilustração em 2000, assim como o Grande Prémio Gulbenkian de Literatura para Crianças e Jovens - modalidade livro ilustrado em 2002, primam pela originalidade da técnica selecionada, combinando recortes nas páginas de textos que separam as ilustradas. Desta forma, simples e eficaz, as imagens veem potenciados os seus significados e leituras, de acordo com a alteração da perspetiva e do ponto de vista. Ativam, ainda, a coerência visual do volume, unindo as várias narrativas.

Ramos, A. M. & Ramos, R., 2010

Atualizado em 17 MARÇO 2022
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