Erva-palavra

Esta obra encontra-se integrada na coleção «Pintar o verde com letras», resultado de uma iniciativa da Direção Regional de Cultura do Norte, «que lançou a um conjunto de escritores e ilustradores o desafio de criarem histórias que tivessem algumas das áreas protegidas daquela zona do país como lugares de inspiração e os seus habitantes, a sua fauna e flora como personagens» e que assumiu explicitamente a intenção de contribuir para o desenvolvimento cultural e a literacia ecológica dos leitores.

No caso presente, autor do texto e autor das ilustrações capturam para o universo literário a paisagem do Parque Natural do Douro Internacional. A obra é marcada por um teor lírico, sendo composta por múltiplas cenas independentes entre si, maioritariamente descritivas, em prosa e verso, revisitando facetas bem salientes da paisagem natural e cultural.

Abre com um texto narrativo, que realiza uma personificação da terra («Terra Avó»), suas filhas e netas, e sua família mais afastada, construindo uma linha temporal através de alusões: os familiares de Terra Avó, ascendentes e descendentes, são referidos pelos seus nomes próprios, tomados das designações de tempos geológicos e continentes desaparecidos (o paliotetravô Gondwana, sua mulher Laurásia e respetiva filha Pangea, os tios Ordovico e Silúrico, etc.); além disso, adjetivos classificativos com base em tempos geológicos são usados como se traçassem perfis psicológicos ou físicos destas personagens - fala-se, por exemplo, da «arquibisavó Armórica, que era Paleozóica». O caráter lúdico é óbvio, explorando mecanismos de alusão e mesmo de paródia, além do jogo com a homonímia («era» nome vs. «era» verbo).

Assim, este primeiro texto, prenúncio do que se seguirá, oferece à obra uma dimensão temporal e, com ela, o anúncio da mudança que ocorre com o passar do tempo - o anúncio das mudanças que o planeta foi sofrendo ao longo dos milénios, das eras e dos tempos, nas várias configurações que os continentes assumiram e que a paisagem rochosa e escarpada evoca.

Os restantes textos retomam alguns destes mecanismos de construção. Encontra-se a personificação do rio, a quem proibiam correr montanha abaixo até ao mar, mas que teimava em fazê-lo, ultrapassando quantas barragens lhe opusessem; ou a do cão, que se pergunta se será pastor, lavrador ou caçador. Encontra-se o jogo de sons e palavras, com caráter humorístico, entre aliterações, a homonímia e a paronímia, na narrativa acerca do velho que levava enchidos e enxada, mas se encheu e resolver levar posta - mas se esqueceu onde a tinha posto... e teve de a procurar de pasto em pasto. E, no último texto, significativamente escrito em mirandês, encontra-se o percurso da palavra em meio fechado, fixada na memória coletiva, pelos mecanismos da oralidade ritualizada.

De cariz diverso, em diferentes registos, os textos assumem o seu caráter fragmentário, cristalizando cenários, personagens, animais e ambientes específicos da realidade geocultural em questão. Promovem a identificação dos leitores com os universos recriados, por via de uma certa personificação, mas também da construção de imagens verosímeis e marcantes, assumindo a especificidade e, até, a raridade dos ambientes revisitados. Os leitores preferenciais, previsivelmente não familiarizados com a paisagem retratada, descobrem, assim, formas possíveis de aproximação, por via do lirismo que percorre alguns fragmentos, mas também do humor.

As ilustrações de Gémeo Luís, na técnica de recorte minucioso que lhe é habitual, cruzam a dimensão mais realista, reproduzindo espécies animais e vegetais, elementos paisagísticos tradicionais, com outra claramente simbólica, onde é possível ler uma certa exaltação da dinâmica da Natureza e a constatação do seu equilíbrio em permanente movimento. O jogo com as linhas onduladas e as sugestões de movimento e de voo alternam com a atenção a pormenores e planos mais aproximados, revelando toda a mestria do artista.

Trata-se, pois, de um entendimento pessoal da paisagem natural e humana deste território, de um olhar convidativo a outros olhares atentos, de perceções do meio com todos os sentidos, incluindo o da imaginação. Um entendimento dominantemente lírico, traduzido pelas palavras e pelas ilustrações, evocativo de tempos imemoriais de supostas integrações harmoniosas entre o homem e o seu meio. Talvez esta obra não promova diretamente, de forma visível, a literacia ecológica dos leitores, mas oferece à leitura uma realidade nem sempre percecionada, e encerra em si, portanto, virtualidades de redescoberta muito promissoras.

Ramos, R. & Ramos, A. M., 2010 

Atualizado em 17 MARÇO 2022
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