O guardador de árvores

Em Guardador de Árvores, colectânea cujo título dialoga intertextualmente com um outro do heterónimo pessoano Alberto Caeiro - Guardador de Rebanhos -, os poemas são percorridos por um mote poético comum, a árvore, que, em jeito de feminina musa, inspira composições singulares. Tratada, em termos mais abrangentes, como um elemento da Natureza, referida no seu todo ou analisada em partes, ou, mais especificamente, enquanto espécie particular da botânica, identificada por uma designação singularizante, a árvore, neste particular herbário poético, parece constituir-se como ser dotado de personalidade própria, uma espécie de indivíduo vegetal, com direitos reconhecidos. A dedicatória do livro é, a este nível, particularmente esclarecedora, dando a conhecer a propriedade universal daquele elemento natural, pertencendo, simultaneamente, à Terra, aos pássaros e aos gatos e a todos, todos os homens.

Assumindo o papel de guardador de árvores, o sujeito poético parece procurar defendê-las e protegê-las através da poesia, conferindo-lhes individualidade e personalidade poética que os textos, de formas diversas, fixam. As imagens, que resultam, sobretudo, de uma apuradíssima técnica de desenho combinada com o jogo entre os fundos branco e negro, explorando o dramatismo do contraste entre eles, recriam visualmente, com subtileza e expressividade, muitas das metáforas estruturantes dos textos, constituindo-se, também, como formas poéticas visuais.

Veja-se, por exemplo, o haiku que abre a colectânea, «De manhã / - é Primavera - / a árvore canta», onde a personificação que estrutura o poema é transformada em metáfora na imagem que o acompanha e que representa uma árvore metamorfoseada em flauta, sublinhando a sugestão sonora do texto. Numa leitura mais profunda, o canto da árvore também pode ser associado ao canto dos pássaros que a habitam, uma vez que a alusão a um momento do dia e a uma estação do ano (kigô) explicaria a origem dessa profusão sonora que o texto opta por encobrir. O segundo poema, «Ramo», na esteira de uma certa poesia concreta ou visual, propõe, pela forma seleccionada, uma relação entre o sentido do texto e a forma da composição, desenhando, na página, a bifurcação de um ramo de árvore. O jogo entre palavras próximas do ponto de vista sonoro permite, além da rima, o mote para a construção da ilustração, uma árvore cujos ramos se bifurcam em forma de coração, captando a sugestão afectiva que percorre o texto: «Na árvore das palavras / há uma / que rima / com amo: / amo / por isso / a palavra / ramo.» À semelhança de outros textos do autor, este jogo com as palavras enquanto formas que estabelecem relações de afinidade entre significado e significante, pondo em causa, pelo menos no âmbito literário, a teoria da arbitrariedade do signo, é definidor de uma poética que explora todas as potencialidades do Verbo nas suas múltiplas apresentações (sonoras, gráficas, semânticas ou simbólicas).

Mas o herbário pessoal e afectivo do sujeito poético é preenchido por algumas espécies de cuja memória não estão ausentes ressonâncias literárias e simbólicas particularmente significativas. Vejam-se os casos do limoeiro, em «Canção do jovem limoeiro», do pinheiro, em «Sobressalto (II)», da ameixoeira, em «Ladrão de sol», do cipreste, da nespereira, do salgueiro, do ácer e do framboyán, em poemas homónimos, da oliveira, em «Oliveira» e «Oliveira pequenina», da palmeira, em «Palmeira na ilha de Creta», o sobreiro, em «Alentejo», ou o plátano, em «Lamento do último plátano de uma velha praça do Porto». Em vários destes textos, a árvore funciona como mote para uma viagem, mais ou menos distante, que a espécie em causa promove. É o caso do cipreste que, uma vez plantado no jardim particular, não cessa de evocar outros espaços, activando memórias da Grécia e da Toscânia, tal como acontece com o framboyán em relação à paisagem de Havana ou com a pequena palmeira da ilha de Creta. As imagens destas árvores concretas, transformadas em poemas, parecem albergar em si memórias de espaços e de momentos fugazes que os textos capturam e perpetuam. As formas breves e muito breves, como a quadra ou o haiku, colaboram na criação desta sugestão de deslumbramento perante a variedade das árvores observadas, fixando instantes e revelando-os em toda a sua dimensão lírica. Em outros textos, como os construídos sob o mote da oliveira, do sobreiro ou mesmo do plátano, perpassa uma dimensão ideológica mais profunda, permitindo ler nas árvores o sofrimento e a luta dos indivíduos. Nas formas do sobreiro nu, no poema «Alentejo», lê-se a dor do isolamento, mas também da exploração, enquanto a oliveira, recriada como «humilde árvore mineira» tem a árdua missão de extrair o ouro da terra, uma espécie «líquido sol» que alimenta os homens. O plátano solitário exprime o desalento e a mágoa pela ingratidão humana, sentindo-se deslocado e oprimido no espaço poluído e corrompido da cidade. O topos da passagem do tempo, associado ao ciclo da vida da árvore, permite ainda a distinção entre a esperança e a euforia primaveris, conotadas com a infância e a juventude, e a idade adulta e velhice, fixadas pelo Outono e pela consciência do final da vida. Lido como um todo, o volume recria também este calendário da existência, de cuja constatação não está ausente uma certa melancolia.

Mas as árvores também são palavras em cujas sílabas se escuta o «rumor de folhas» que os poemas plantam e os livros perpetuam. Guardando árvores e palavras, os poemas, alguns próximos de uma certa ecopoesia, parecem, à semelhança de um herbário, coleccionar e cristalizar momentos e seres que, como o homem, com quem partilham a Terra e a verticalidade, surgem simbolicamente ligados à efemeridade sem deixarem de sugerir uma certa ideia de eternidade e de totalidade.

Ramos, A. M (2010)

Publicado em

Malasartes [Cadernos de Literatura para a Infância e Juventude],

n.º 19, maio de 2010, p. 73-74 (ISSN 0874-7296)

Atualizado em 17 MARÇO 2022
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