Ainda falta muito?

Depois da publicação de O Gato e a Rainha Só (2005) e Não quero usar óculos (2008), um álbum narrativo particularmente original para cuja qualidade também contribuem as ilustrações de André Letria, desafiando os limites de interpretação do texto e colaborando na criação de um humor muito particular, Carla Maia de Almeida lança, desta vez com ilustração de Alex Gozblau, Ainda falta muito?.

Trata-se de uma narrativa em primeira pessoa, realizada pela filha mais velha de uma família em viagem entre a cidade onde vivem e a aldeia onde a avó mora. Marcada pela impaciência do irmão mais novo, que faz o percurso pela primeira vez, a narrativa cruza ainda, sob a forma de pequenas analepses, as memórias da narradora de viagens anteriores e as intervenções dos pais, tentando acalmar a ansiedade e a inquietação infantis. O título exprime, pois, como uma espécie de refrão, um misto de nervosismo, de curiosidade (mas também de cansaço) perante a novidade que se avizinha, promovendo a identificação por parte dos pequenos e grandes leitores e viajantes com a situação recriada. As ilustrações de Alex Gozblau, num registo diferente do que nos habituou, pelo predomínio de tons mais claros e de uma luminosidade mais solar, captam com expressividade as emoções das personagens, os diferentes tempos do discurso e da ação e o ambiente vivido dentro e fora do carro onde as personagens que se encontram encerradas. Na narrativa visual cruzam-se, por isso, diferentes espaços e tempo, várias emoções e estados de espírito, acompanhando uma narrativa construída também com base num registo fluente, bem-humorado e organizado de forma a explorar ritmos decorrentes da sua estrutura paralelística. Veja-se, igualmente, como as imagens jogam, alternando sucessivamente entre ambos, com o espaço fechado da ação que decorre no interior da viatura e o espaço aberto e amplo exterior. Além disso, este último é construído sobretudo pelas memórias da narradora e as suas projeções futuras, numa hábil combinação de tempos. A capa, recriando o interior do automóvel, combinada com a interrogação que constitui o título, permite desde logo as primeiras inferências sobre a situação narrada, criando expectativas e abrindo possibilidades de leitura.

As guardas, por seu turno, quando lidas em articulação, sugerem a passagem do tempo, simulando o movimento da viagem, mas também a transição entre espaços e ambientes. A localização do automóvel e o seu corte, surgindo dividido nas duas guardas, permitem, ainda, a identificação da família protagonista da viagem, distinguindo as crianças dos adultos, aspeto particularmente marcado na narrativa, sobretudo na interpretação diferente que pais e filhos fazem do espaço e da passagem do tempo.

Ramos, A. M (2010)

Atualizado em 17 MARÇO 2022
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