A grande invasão

Curiosa parábola de um símbolo da modernidade e da história do homem nos últimos 100 anos, esta narrativa explora, com humor e com uma ironia particularmente curiosa, a presença do automóvel nas sociedades contemporâneas, assim como a forma como, progressivamente, este meio de transporte se tornou central no nosso quotidiano, ganhando significados simbólicos, sociais e até culturais sobre os quais importa refletir. Os automóveis são acusados de quererem "acabar connosco", visto que, "por causa deles, o planeta está a aquecer e os seres vivos... quase a sufocar". Aquilo que em tempos terá sido natural à condição humana - caminhar - é agora dificultado pelos carros e, como essa prática foi abandonada, os seres humanos estão a ficar "pesados, rabugentos... e doentes". Impõe-se, portanto, uma nova consciência de algumas práticas quotidianas e a adoção de hábitos mais saudáveis e congruentes com a condição humana.

A originalidade da perspetiva adotada reside, desde logo, na tese defendida pela narrativa, segundo a qual o automóvel é um extraterrestre que invadiu a terra com o intuito de a dominar e controlar e que nós, seres humanos, somos as suas vítimas preferenciais. A partir daqui, toda a intriga, uma espécie de argumentação por insistência e exemplificação, se desenvolve em torno da demonstração das consequências da omnipresença do automóvel, explorando os efeitos negativos desta relação. A dimensão irónica, mesmo satírica, reside no facto de o próprio narrador - que denuncia a situação de invasão - ser vítima dela e, também ele, parecer obcecado pelo automóvel.

Do ponto de vista visual, a ilustração não só introduz mais personagens, um pequeno homem amarelo e um cão, como cria uma espécie de breve narrativa marginal em torno da busca de um carro amarelo que percorre todas as duplas páginas do álbum. Além disso, é graças à leitura da imagem que é possível identificar os invasores com os automóveis.

A opção por um tipo de papel que simula o avesso do papel craft confere uma textura particular às páginas, ao mesmo tempo que sugere uma dimensão caseira à criação, uma espécie de projeto pessoal, privado e subjetivo, que se assemelha a uma curiosa (e irónica!) teoria da conspiração. Para esse efeito concorre igualmente a presença de setas, de esquemas e diagramas, de mapas e roteiros, assim como a opção por um tipo de letra manuscrito, em irregulares maiúsculas. A existência de elementos de narrativa paralelos à narrativa principal e do que parece ser um conjunto de anotações ao texto sugere uma construção discursiva a vários momentos, com sucessivos regressos à obra e com a produção de novos comentários e ilustrações. O leitor estará, portanto, perante não só o produto final, a obra terminada, tal como o autor a concebeu, mas igualmente perante o processo de criação, tornado visível pela panóplia de anotações, comentários e elementos marginais. Assim, aquele não se encontra perante um livro produzido em massa, mas um bloco de anotações singular e pessoal, cujo acesso exclusivo lhe é facultado pelo autor. A evocação direta do leitor ("Não estão a perceber? Serão vocês tão distraídos...") aproxima igualmente emissor e recetor, permite o desvendar do segredo e torna-os cúmplices na descoberta do que anda escondido à vista de todos.

Ramos, A. M. & Ramos, R., 2010 

Atualizado em 17 MARÇO 2022
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